O jeitinho brasileiro é uma forma de corrupção? |
Se a regra transgredida não causa prejuízo, temos o
“jeitinho” positivo e, dirá eu, ético. Por exemplo: estou na fila, chega uma
senhora precisando pagar sua conta que vence aquele dia e pede para passar na
frente. Não há o que reclamar dessa forma de “jeitinho”, que seria universal
porque poderia ocorrer na maioria dos países conhecidos, exceto talvez na
Alemanha ou na Suíça, onde um trem sai às 14:57! E sai mesmo: eu fiz o teste.
A questão sociológica que o “jeitinho” apresenta,
porém, é outra. Ela mostra uma relação ruim com a lei geral, com a norma
desenhada para todos os cidadãos, com o pressuposto que essa regra universal
produz legalidade e cidadania! Eu pago meus impostos integralmente e por isso
posso exigir dos funcionários públicos do meu país. Tenho o direito — como
cidadão — de tomar conta da Biblioteca Nacional, que também é minha. Agora, se
eu dou um jeito nos meus impostos porque o delegado da receita federal é meu
amigo ou parente e faz a tal “vista grossa”, aí temos o “jeitinho” virando
corrupção. A essas alturas, temos uma outra questão básica.
A democracia liberal inventada pelos franceses e
disseminada pelos americanos acabou com o regime do privilégio que graduava o
comportamento. Havia um código de leis para os nobres, para o clero e, outro,
para o povo. Um mesmo crime era julgado de modo diverso, caso fosse feito
cometido por um nobre, por um padre ou por um ferreiro. Alguns comportamentos
eram crimes só se fossem cometidos por plebeus. Veja o romance Os Miseráveis de
Victor Hugo e O Conde de Monte Cristo, de Dumas. Ali se encontram bons exemplos
desse mundo legal hierarquizado, onde pertencer a uma ordem ou família livrava
a pessoa de certas crimes e permitia uma extraordinária latitude relativamente
a outros tipos de comportamento. A Revolução Francesa liquidou o privilégio (ou
a lei privativa ou privada). Ela instituiu um código universal dos direitos (e
deveres) humanos, proclamada auto-evidente na constituição americana. Ora, esse
código não contempla mais a gradação, a relatividade diante da lei que exclui a
hierarquia, instituindo a igualdade como o valor central das relações entre
cidadãos e normas governamentais. Os nobres não pagavam impostos; depois da
revolução todos, inclusive o presidente paga.
No Brasil, a República fez, no papel e em cima de
um regime social aristocrático de fato, de direito e de protocolo ideológico, a
revolução igualitária. Na França, ela levou um monte de gente para a
guilhotina, aqui, ela inventou — é lógico — o “jeitinho” e o “você sabe como
está falando?” como duas pernas de uma mesma ficção jurídica. Que ficção é
essa? Ora, é o faz de conta de que todos obedecem a lei, quando sabemos que os
velhos aristocrata e os donos do poder (os burocratas, e altos funcionários, e
os eleitos) são mais donos do que o “povo”. Com isso, podemos continuar
contemplando o privilégio de não cumprir integralmente a lei, debaixo de um
regime igualitário. Na França pré-revolucionária, dava-se, como no Brasil
Imperial, o oposto. Em regimes onde o valor organizatório era a desigualdade, o
jeitinho era libertar o escravo, deixar de ser medalhão, dar a um pobre a
oportunidade de ser um igual.
Em suma, o jeitinho se confunde com corrupção e é
transgressão, porque ela desiguala o que deveria ser obrigatoriamente trado com
igualdade, ou seja, sem sine ira et studio, como dizia Max Weber, roubando um
adágio de Tácito. O que nos enlouquece hoje no Brasil não é a existência do
jeitinho como ponte negativa entre a lei e a pessoa especial que dela e livra.
É a persistência de um estilo de lidar com lei, marcadamente aristocrático que
de certo forma induz o chefe, o diretor, o dono, o patrão, o governador, o
presidente, a passar por cima da lei porque ele a “empossa”. O cargo público
ainda hoje, e apesar dos avanços, ainda é concebido aristocraticamente, não
burocraticamente e patriarcalmente como o foi nos velhos tempos de Dom
Casmurro.
Penso, por tudo isso, que é mídia tem um papel
básico na discussão desses casos de amortecimento, esquecimento e jeitinho,
porque ela ajuda a politizar o velho hábito que insiste em situar certos cargos
e as pessoas que os empossam, como acima da lei; do mesmo modo e pela mesma
lógica de hierarquias que colocam certas pessoas (negros, pobres e mulheres)
implacavelmente debaixo da lei. O que faz com que a lei seja desmoralizada e
quem a cumpre, estigmatizado como otário ou sub-cidadão.
Texto do antropólogo Roberto da Matta.
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